Liberdade e Diferença
Reaviva-se na ESEN, por meio de
uma exposição de trabalhos realizados pelos alunos, a relevância da Filosofia e
o seu legado de reflexão sobre valores que são inequivocamente os valores da
UNESCO. Um património é uma herança que não escolhemos e que, por ser herança,
nos enriquece e nos torna responsáveis pela sua conservação e multiplicação.
Ensinar é, por seu lado, o gesto cuidador de conservação e transformação do
recebido em algo de diferente, ou revelador de potencialidades outras que nunca
se tinham destacado no que foi herdado e conservado. Nesse sentido, o
Departamento de Filosofia escolheu o tema da liberdade e da diferença
para convidar os alunos a pensar e cuidar do valor destes dois valores que se impuseram
como tema de uma vasta tradição que deixou vasta obra e, nalguns casos, o
exemplo de vida dos seus autores em nome da defesa destes mesmos valores,
pensamos por exemplo em Simone Weil que, sendo sensível às condições de
trabalho dos operários se tornou ela mesma operária fabril, e Levinas que,
tendo perdido família nos campos de concentração, dedicou a sua vida, como
pensador, a escrever e dar conferências sobre a diferença do outro e a
infinitude do seu rosto.
Infelizmente os seus gestos e os
seus textos não influenciam as decisões de muitos que fazem, como o filho
pródigo, e decidem sob o véu do esquecimento, ignorando esse legado e essa mais
funda compreensão do significado e sentido destes valores fundamentais para o
indivíduo e para o coletivo das sociedades. Decidir sob um véu de esquecimento
é um ato cada vez mais intencional e mais desastroso e a paisagem humana da
Europa e a iminência de um conflito nuclear a nível mundial mostram-nos como é
viver sob o efeito das consequências desse esquecimento voluntário do que
incomoda. Afinal, reconhecer que a liberdade pode ser o fundamento do mal e que
a diferença é uma fonte de poder tão poderosa como cada um dos que se
consideram iguais deve ser uma reflexão a erradicar, pois a sua consideração poderia
levar o cidadão a responsabilizar o que decide mal e pelo mal. Por isso,
vivemos numa sociedade em que a decisão política assenta num maniqueísmo
simplista, em que o mal está nos outros de que temos que, dizem, afastar-nos,
ou combater, ou isolar. Ora, o mal está em cada um porque a liberdade tem o seu
fundamento no homem como tão bem lembra esse poema de Miguel Torga quando diz, liberdade que estais em mim, santificado
seja o vosso nome… Por outro lado, ostracizar o estrangeiro, diminui-lo na
sua condição é continuar a esquecer a importância do outro e o modo como o
outro, o diferente, foi fundamental para a Europa se reconhecer a si mesma e
criar a sua identidade cultural. Como entender a diferença? Como uma ameaça,
como um desafio humano? Humanamente, diferença é um desafio e potencializadora
de encontros que alargam o tecido da nossa identidade que deve ser construção
permanente, deve ser ipseidade, movimento que se faz e tece no devir e na
abertura ao outro que há em nós e ao outro que vem de encontro a nós. Quando
ela é redutora e propositadamente lida como ameaça, ela rotunda em
etnocentrismos, racismos e relativismos problemáticos e intolerantes.
Diante da herança que torna o
homem consciente de si e do mundo e da decisão política, e o homem é livre na
pólis, como lembra Hannah Arendt, o aluno que é sempre cidadão e pertence à
pólis, deve discutir valores, porque sem valores não há regras nem normas
enraizadas ou fundadoras de um viver comum. Parafraseando Kant dir-se-ia que
normas sem valores são vazias. A norma faz sentido quando ela traduz um ideal,
um bem maior de realização continuada e promotora de sentido e de
sensibilização. E a sensibilização para as diferenças já não é apenas uma
necessidade, é uma urgência.
Neste dia, diante dos trabalhos
dos nossos alunos gostaríamos de pensar que a sua obra em torno destes dois
valores, liberdade e diferença, é um ato político tal como ele deve ser
entendido, como uma interferência na consciência crítica daqueles que vão
receber esta herança e percebem, pelo conhecimento da mesma, que a decisão não
pode assentar no esquecimento mas na memória do que somos e do que foi pensado,
para não chegarmos ao fim sem nada e tornando o mundo em nada.
Porque acreditamos que ensinar é
enriquecer espiritualmente os alunos, acreditamos que a celebração deste dia,
mais uma vez neste Centro UNESCO, é uma forma de credibilizar valores e
reafirmar a nossa esperança nessa imensa arca de Noé com que a Filosofia
oferece a cada geração a possibilidade de continuar o mundo no meio do ruído da
ignorância e do esquecimento. O CENTRO UNESCO agradece ao Departamento de
Filosofia as iniciativas e aos alunos em particular o seu renovado interesse e
dinamismo reflexivo.
A Coordenadora do
Centro UNESCO
Isabel Santiago
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